Entrevista — Leandro Curi: ciência, combate à pandemia e negacionismo

Entrevista na íntegra com Leandro Curi, médico infectologista

Foto: Fábio Silva/Prefeitura Municipal de Contagem

Como você conceituaria o negacionismo?

“Vou falar do ponto de vista da ciência, que é a minha área. O negacionismo é uma coisa irônica, porque, geralmente, as pessoas que são negacionistas em relação à ciência estão negando o que elas utilizam. Por exemplo, a pessoa é negacionista mas foi vacinada. Ela é negacionista, mas, quando tem dor de cabeça, toma uma novalgina. A dipirona demorou anos até que ficasse pronta e isso foi possível por meio de estudos científicos.

Ela é negacionista, mas usa o WhatsApp para disseminar o negacionismo dela. Então, ela está confiando naquele celular, que foi feito pela ciência, usando a internet, que é uma coisa científica. Ela está usando o tempo todo artifícios da ciência para negar a ciência.

E não estou falando de uma pessoa que está no meio do mato, em uma gruta, sem qualquer acompanhamento da sociedade, falando que não acredita na ciência. É uma pessoa que usa a ciência o tempo todo. Ela já pegou um carro, usa o elevador, eventualmente anda de avião, utiliza alimentos com conservantes, usa o celular.

Então o negacionismo para quem vive em sociedade chega a ser irônico, contraditório”.

Como o negacionismo de uma pessoa, individualmente, pode impactar no coletivo? Principalmente em uma pandemia, quando precisamos de uma colaboração geral.

“Eu acredito que o negacionismo, se for para si próprio, não configura um movimento. Quando a pessoa divulga ideias não científicas para os outros ela faz um desserviço para a sociedade.

Sem comprovação científica, sem ser especialista naquela área. Eu não consigo dar opinião no cálculo de um edifício, não vou me arriscar. Mas se eu cismar que a cloroquina funciona porque eu quero que funcione, ou porque um líder religioso diz que funciona, sem apresentar estudos para isso, cai por terra.

Então, como isso impacta? Eu posso falar até da questão do termômetro, os que aferem a temperatura na testa. Já saiu uma corrente no WhatsApp dizendo que tem que aferir na mão, porque na testa a radiação vai fazer sei lá o quê. No fundo, eu me divirto, porque é um grande circo. Mas eu me preocupo, ao mesmo tempo”.

Hoje, o sentimento é de que antes as pessoas tendiam a acreditar mais na ciência. Por que acha que isso mudou? Por que as pessoas começaram a duvidar do que antes era tão certo e considerado confiável?

“Lideranças. Chefes, governantes, na verdade, porque o líder deveria inspirar. Quem tem o poder da palavra, como a mídia, um líder religioso ou um líder político, deveria ter responsabilidade social. Quando falo na mídia, não ouso falar nada que não seja do meu conhecimento. Então, quando você fala sem conhecimento, é doloroso, é triste.

Eu não acho que isso surgiu agora, eu acho que isso veio à tona agora. Então esses preconceitos, esse movimento louco ‘a Terra é plana, a vacina não funciona, a cloroquina funciona porque eu quero que funcione, a pandemia é uma gripe’, isso existia no íntimo das pessoas. Mas talvez agora exista abertura para que essa linha medieval venha à tona”.

Como a ciência enxerga o papel do poder público na pandemia?

“É o poder público que, no Brasil, infelizmente, fomenta a ciência. Ou escolhe não fomentar a ciência. Em Belo Horizonte, depois de muita pressão, abriram os bares. Mas o poder público pode falar ‘estou abrindo o bar por pressão, não significa que vocês precisam ir’. O poder público pode chegar e falar assim ‘pessoas, vacinem. Nós disponibilizamos vacinas (isso de qualquer doença) para vocês usarem e se protegerem’.

Então o poder público é o que nos rege, e infelizmente tem pessoas que acompanham só a ideia de poder público, seja ele de qual vertente for.

Um parêntese: esse ano eu vi uma coisa muito louca que é a politização da ciência. As pessoas pensam ‘eu vou crer na ciência que o meu líder político fala’, e isso não é uma coisa certa. Um bom gestor precisa de pessoas técnicas com ele para falar o que é correto ou não. Não por conta própria dar opinião sobre o que não é da sua área. Assim como eu falei, eu não sei fazer o cálculo de um prédio. Mas se eu precisar fazer um prédio eu vou consultar um engenheiro para isso, assim como, se ele passar mal, vai me consultar.

Então a politização da ciência é uma coisa que me assusta muito. Eu vejo traços medievais, como quando quem falava que a Terra girava em torno do Sol era queimado na fogueira. Se a gente abrir espaço para isso, (e eu não estou nem falando de nomes, isso é mundial) eu acredito que é uma regressão. Me assusta, como agente da ciência”.

Quais seriam os caminhos para combater esse negacionismo, agora que ele já se instaurou?

“É difícil. Acho que o negacionismo está maior do que o espalhamento da Covid-19, está mais rápido.

A gente, com dificuldade de vacinar, e o negacionista andando numa velocidade muito maior. Acho que eu conheci mais pessoas infectadas pelo negacionismo do que pela Covid-19.

Eu acho que a vacina para essa doença é a educação. Mas, infelizmente, é uma vacinação de longo prazo. Ainda mais em um país em que a educação está meio nas trevas, voltando a essa ideia medieval.

Mas realmente me assustou, esse ano, inclusive vi médicos falando coisas que não tinham conhecimento científico. Isso me assusta muito. Mas também foi bom para fazer uma peneira. Às vezes tenho colegas que são excepcionais nas áreas deles, mas a opinião em outras áreas decepciona. Fico me perguntando, qual é o seu lado: a ciência ou a política?”.

Quais experiências pessoais, envolvendo pacientes, colegas, casos você destacaria durante a pandemia?

Eu tive muitos colegas médicos, felizmente não tão próximos, que negaram a pandemia, a gravidade dela, que reproduziam o discurso de outros líderes. Mas eu tive muitos pacientes com Covid, vi alguns indo a óbito (a maioria não, graças a Deus), então nunca conseguiria menosprezar isso.

Mas eu trabalho em um hospital, de grande porte, em que estão aferindo a temperatura na mão, porque teve até funcionário do hospital, segundo o porteiro, que ameaçou bater se usassem o termômetro na testa.

Estamos em 2020, é um termômetro, e tem gente ameaçando bater porque leu na mensagem do WhatsApp que vai ter alguma alteração em uma glândula no cérebro.

Então tenho visto essas pequenas bizarrices. Diretamente comigo, algumas pessoas me perguntam sobre remédios que não têm comprovação científica, e eu, obviamente, sou obrigado a explicar que não tem eficácia comprovada, que não justifica prescrever.

É até uma pena. Fico bem chateado com essa situação. A gente já está vivendo uma pandemia, e ainda é obrigado a combater algo talvez pior, que é a ignorância.

Eu atendi muita gente que questionou sobre a cloroquina, e eu falei que não ia passar. Não estou falando que cloroquina, azitromicina, ivermectina, annita, não estou falando que eles não funcionam. Estou falando que não tem evidência científica de que eles funcionam. Não vou prescrever uma coisa para um paciente se não tenho um grau de evidência, confiança de que aquilo funcione.

Eu vou para casa e durmo tranquilamente sabendo que ninguém está passando mal por causa de um remédio que eu passei. Não é para isso que eu virei médico. Então, enquanto eu tiver artigos científicos me respaldando para o sim e para o não, vou me guiar através deles”.

Leandro Curi de Lima e Sousa possui graduação em Medicina pela Faculdade da Saúde e Ecologia Humana (2013), é médico infectologista da Prefeitura Municipal de Ibirité e médico da Prefeitura Municipal de Contagem. Atualmente é responsável técnico do Comitê de Combate ao Covid-19 do Município de Ibirité-MG e apoio ao Comitê Técnico de Combate ao Covid-19 do Município de Contagem-MG.*

*Informações retiradas do Lattes.

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Negacionismo, desinformação e democracia
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Written by Negacionismo, desinformação e democracia

Reportagem e entrevistas realizadas por Helena Benfica, Sofia Leão e Yves Vieira para a disciplina de Projetos B1, do curso de graduação em Jornalismo da UFMG.

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